Nunca publiquei este conto num espaço próprio. Lembro-me que a intenção era escrever um conto de Natal para o blogue de um amigo e este foi o resultado. Apontei a data. 19 de Dezembro de 2010 e por incrível peguei nele hoje, dia 19 de Março de 2012. Foi bom relembrá-lo, ver que o crescimento está presente.
Um sussurro não é
como uma melodia que percorre o ouvido, fazendo carícias e confortando
serenamente, torna-se em algo diabólico quando o desejo em escutá-lo aumenta
gradualmente. Liberta-se da boca venenosa alheia e desaparece estupidamente,
numa corrida rápida cujo objectivo final é atingir a meta e possuir todos os
lucros prometidos. Todos os sussurros percorriam os seus ouvidos com a língua,
saboreando-os tranquilamente. O ar que percorria o seu corpo escanzelado até
aos pulmões tornava-se escasso, na tentativa de capturar todos os sussurros ela
utilizava todos os tipos de energia. Com origem nos fantasmas, companheiros da
sua vida, os sussurros aterrorizavam as noites, faziam transpirar até o corpo
não conter mais impurezas para libertar pelos poros, situados em todos os
recantos da pele. Mergulhava num oceano recheado de vozes pulsantes,
consumidoras de todos os estilos de consciência e quando duas mãos apertavam o
nariz e o pescoço, a jovem rapariga transportava-se para o presente. Um tiquetaque proveniente do relógio
poisado na mesinha de cabeceira era uma prova de existência na realidade, uma
vez que era tantas vezes puxada para o imaginário mal fechava os olhos, todas
as vezes que impedia a luz de entrar no espírito.
Todas as sensações proporcionadas
pelos pesadelos provinham de uma saudade gélida, as brisas congelantes
aspiravam o peito sedutoramente. A mão da jovem tocava em cavidades húmidas
onde outrora estava presente uma caixa torácica, recheada com dois pulmões, um
coração e alguns ossos para a protecção dos órgãos essenciais. Uma toalha
pendurada na casa de banho servia para secar os dedos sujos pela humidade
corporal incaracterística. O ar apodrecido pelo ambiente em que vivia era
inspirado pelas narinas, percorria a garganta e ao invés de violar, na
tentativa de arrombar todas as células dos dois pulmões queimados pelo tabaco
em demasia, apenas se desvanecia novamente pelo ambiente sugador de todo o tipo
de felicidade existente em carne e osso. Uma lágrima percorria o seu rosto
desde o primeiro dia em que o vazio estava presente no peito, literalmente. Já
lhe passou pela mente colocar uma bateria dentro do buraco para escutar uma
batida estridente, todas as vezes em que o silêncio se apodera e agarra as suas
mãos denegridas.
Ao abrir as janelas de casa, todos
os olhares na rua dirigem-se à rapariga com cabelos louros e perfuram-na ainda
mais numa pseudo fatalidade que a
deveria matar, já diziam os populares que “o olhar pode matar”. Apetecia-lhe
gritar até não restar mais nenhum pedaço de corpo, todas as tripas explodiriam
e embateriam no vidro da janela para a qual estava virada. Mas não passa de uma
mentira, uma ilusão. Não devia ter vendido a alma a uma espécie de diabo que
lhe assaltou os pesadelos com promessas inventadas e um contracto na mão.
Brilhante, prateado. Continha todos os desejos pelo qual ansiava e assinar
friamente, toda a sua caixa torácica foi sugada a uma velocidade estonteante
com sangue negro a manchar o contrato, que se diluiu no peito da criatura
sorridente. Pelas mãos do diabo foi plantada, na Terra, uma espécie de árvore e
até aos dias de hoje ainda espera que o seu crescimento dê os frutos
ambicionados. Tantas centenas de anos já esvoaçaram e os olhos ainda não
conseguem ver qualquer tipo de evolução naquele pedaço de terra em específico.
Uma lágrima não passa de uma tentativa para dar vida ao que faleceu há imenso
tempo. Nunca ouviste falar em burla? A sensação de ter sido burlada invadia a
rapariga, um coração, pulmões e todas as ligações tinham-lhe sido retiradas e só
conseguia respirar de alívio por não ter negociado o seu cérebro, o único
elemento que dá vida à carcaça que a carrega.
Todas as sensação de vivacidade que
experimentava tinham origem mal os seus ouvidos captavam o som dos sapatos de
um príncipe que saltava da sua janela e a tomava nos braços, para um noite de
sexo. Precisava de duas mãos a percorrem os seus seios, de sentir um corpo
dentro do seu com toda a violência e audácia para colmatar a falta de
batimentos do coração e a circulação de sangue que vertia a partir do buraco no
seu peito. Era o preço a pagar enquanto a árvore não florescia, seguindo o
ciclo natural de vida. Os cabelos louros não passavam de simples artefactos,
objectos para atingir energia na alma. Mal o príncipe abandonava os aposentos,
descendo pelas mesmas pedras por onde tinha trepado, ela só tinha vontade de
sentir uma faca nas mãos e arrancar os olhos do seu rosto. Afinal, desferir golpes no próprio corpo também
trazia a adrenalina suficiente para se sentir viva. Quando desceu as
escadas até ao pedaço de lama em que estava plantada a sua felicidade, chorou e
suspirou sofregamente. Arrancou tantos pedaços de terra que as unhas se
desfizeram, deitando pequenas gotas de sangue. Entranhando na terra toda uma
vida recheada de pesadelos, fantasmas, sussurros, dias de chuva e desgraças.
Pedaços de lama destruíram os cabelos louros, tornando-os negros, os dedos
deitavam sangue de tanta raiva contida neles e o buraco encheu-se de pó,
pedaços de pequenos bichos que consomem os corpos mortos e pequenas pedras.
Adrenalina, sensações de vivacidade
experimentaram o corpo da jovem pela primeira vez de uma forma inconsciente.
Lentamente, mostraram que estavam presentes nos braços ou nos pés, quem sabe
nos próprios olhos. O pequeno diabo desenterrou-se, aparecendo de um pequeno
pedaço de terra escurecida pelos desgostos.
- Não podes ambicionar todos os
tipos de felicidade do Mundo sem utilizar qualquer tipo de energia, entendes?
Não te é permitido ambicionar todos os sonhos sem um pouco de esforço? Se não
fores tu própria a conquistá-los, ficas sem coração. Sem alma, minha querida. A
partir desse momento não passarás de um corpo que apodrece bem aos poucos. – E
a caixa torácica da rapariga aparece, magicamente, nas mãos do jovem diabo. Ao
entrar no vazio que a preenchia, as lágrimas que brotavam do seu rosto e
salpicavam o diabo provocavam o nascimento de asas esbranquiçadas nas costas da
criatura malvada. Ao chorar de felicidade, o diabo transformava-se ternamente
num anjo, a aparência maquiavélica desaparecia-lhe como um tornado destruidor
de todos os terrenos existentes.
- E sabes, não podes alcançar a
felicidade sem qualquer tipo de amor alheio. Qualquer tipo de amor torna-te
mais humana.
E ele voou em direcção às nuvens,
nunca nenhum olho humano voltou a captar a sua presença. E até hoje, a jovem
dorme descansadamente.