09 junho, 2012

Rascunho sobre as paixões,

Sinto a leveza de umas mãos a passarem, a tocarem nos meus fios de cabelo. A leveza é sentida na rápida e simples passagem pela cor castanha dos curtos fios, na voz sussurrante recheada de encantamentos. São cantadas várias músicas aos meus ouvidos conservados. Ao criar-me, Deus desejou uma passagem temporal lenta ao meu corpo, no momento em que coseu a alma a estes pulmões, a este coração, aos lábios carnudos. Passa os dedos pálidos pelos meus cabelos para pressentir a pureza da minha alma, exposta a todos os elementos cancerígenos dos outros seres humanos. Ao criar-me pensou na minha existência como uma paixão, não como uma experiência. Todas as tentativas associadas às experiências de laboratório trazem mecânica, frivolidade, passagem rápidas. Esperava-me uma mão pálida e serena a massajar-me os cabelos, ao contrário de uma mão áspera, com dedos fortes e uma violência extrema em todos os tecidos celulares. Os meus olhos não recebiam a luz do Sol, encontrava-me deitado à beira mar com as ondas a enrolar à minha volta. 

À medida que Ele passava as mãos pelos meus cabelos, as ondas protestavam para tocarem nos meus pés, o elemento mais destruído pela vida urbana, pelos sapatos apertados, pelo lixo depositado em todas as esquinas onde dezenas de jovens eram violados. Apelavam, rezavam ao enrolarem para sentir a minha destruição. Os meus lábios recebiam o ar de Deus, a olhar-me serenamente. Soltava lágrimas pelos caminhos traçados, pela ausência de inocência na minha essência e com a outra mão tocou no vazio do meu peito. Mexeu nas cavidades, a temperatura baixa da caixa torácica gelou-lhe os dedos fantasmagóricos. Chorava por uma morte corporal da sua criação, do seu amante. Deus sentia a minha vivacidade depositada nos lábios e desejava colocar-me no mar, uma dualidade que o matava espiritualmente.

Ao tocar-lhe nos cabelos viu o passado, sentiu e bebeu todas as experiências da vida humana. O sabor de vários cigarros, as roupas assentadas no peito trabalhado por todas as máquinas de origem humana, as calças nas pernas, as pulseiras a apertarem-lhe o pulso. O bater do coração parou-lhe a respiração, à medida que entrava nas minhas experiências humanas e engasgou-se com estas novas sensações. Meteu as mãos à garganta para não sentir a morte por asfixia. Em todos os minutos em que bebeu do liquido da minha alma, as ondas conservavam energia para me levar, por me amarem e para me guardarem na imensidão das águas do mar. Cantavam odes, glorificavam uma divindade que desprezavam todos os dias. Enrolavam-se para destruir uma possessão divina, uma paixão imortal. Ele continuava a enrolar-me os fios de cabelo com os dedos. Na minha morte corporal senti a confiança a esvoaçar pelas minhas cordas vocais, com o silêncio a penetrar na escuridão daquela noite.

A todas as experimentações saboreadas por este deus do Olimpo respondia com silêncio, por indignação, para partir e amar novamente Hades. Na minha imortalidade, beijaria a divindade servente às Terras inferiores, rasgaria as roupas do guardião de todos os mortes na sede de desejo. Sonhava com o imperdoável. Quando Deus me enrolava os fios de cabelo castanho, escondia os meus desejos profundos. As ondas imploravam e continuavam a rezar para me levarem. A leveza das mãos passou para o meu peito, ao empurrar-me para o mar. O sal das águas conservou-me rapidamente e enrolou-me no fundo do oceano.

Libertei um sorriso ao permanecer deitado em todas as rochas, ao sentir-me livre. As ondas lavaram os meus pés, ofereceram-me juventude eterna. Toquei nos lábios de um deus morto, apedrejado por todos os seres humanos, capaz de descer aos confins do Mundo. Enrolei as minhas mãos sobre o seu pescoço para o olhar atentamente, ao sentir que me levava das profundezas do mar. As ondas lavaram-me os pés brancos e senti o início da vida com a morte corporal.

3 comentários:

Leonor Neto disse...

lindo, em todos os sentidos

David Pimenta disse...

Muito obrigado, minha querida!

Anónimo disse...

faz-me mal...mas vicia-me. Acabo de chegar e quero ficar...na escrita dos seus textos.